28 de set. de 2009

Um pacifista

Não irei meter a mão em sua cara, Loulu. Sou um pacifista, porra. Um pacifista grosso, sem paciência, mas um pacifista. Pode acreditar, Loulu. Pois veja, éramos dois pelo preço de um, ou menos, a vagabundear pela noite ao som de Tom - Waits ou Zé. Era lá que achávamos gente insípida que nos fazia sentir melhores. Era lá que eu usava meu papo de pacifista quando o cara era mais parrudo que eu. E agora eu uso o mesmo papo, Loulu. É que não quero te meter a mão, muito embora deva e sei que me arrependerei por esta omissão.


Eu me lembro, Loulou, de tardes enfadonhas em que subimos as montanhas tentando fugir do tédio ilhéu... Me deixa falar disso, Loulou. Eu gosto de repetir as mesmas histórias... Numa dessas tardes, eu dizia, tenho na cabeça como um filme em que volto e avanço, ora assisto em câmera lenta, e pauso fotografias, nítido, realista, eu tenho na cabeça, Loulu, você com um lenço ridículo na cabeça e óculos gigantescos, catando entre repolho cozido pedaços de salsicha. Eu me lembro de ter comentado sobre a pobreza culinária dos germânicos. Eu disse:


“Povinho mais sem imaginação para comida, gastaram tudo em filosofia e artes”.


“Não é tão grave”, você falou. Fez uma pausa, mastigou um pedaço de salsicha e continuou: “Alguns deles fizeram muito pior. Construíram infernos verdadeiros para olhos vivos. Mataram gente como se mata frango, os granjeiros do mal”.


Eu olhei para o joelho de porco no meu prato e pensei em infernos para olhos vivos, além de estômagos.


Não, não sou de reclamar do que como, você sabe. Em 1998 eu era um rapaz de mochila nas costas em uma rodoviária de interior. O dinheiro que tinha no bolso para começar a vida na capital mal pagaria o prato que comemos naquela tarde. Já te disse, Loulou, mil vezes ou mais, eu sei avaliar a hierarquia qualitativa dos sofrimentos e tenho uma porção de quebra-galhos espirituais, transcendentes... Eu me tornei outro homem depois de Tagore, Loulu.


Não, não insista para ir embora. Eu só deixo você sair depois de ouvir tudo. Não, não troco tudo por algumas pancadas. O que são hematomas? E se depois você sair daqui e me denunciar na delegacia da mulher? Lei Maria da Penha, essas coisas... Não. Fique e ouça Loulou, não sou trouxa... Pare loulou, PARE... É, vai ser assim, sai e te meto chumbo. Bonita, né? Comprei semana passada, não sou um pacifista ortodoxo. É uma pistola .40. Dizem que a gente só ouve o barulho do tiro quando acerta o alvo. Não sei se é verdade. Será que eu só ouvirei o barulho quando você não estiver mais entre nós, Loulu?


Isso. Senta, se acalma. Agora me ouve, Loulou. Nunca, nunca mais, tá entendendo, nunca mais chute meu gato. Nem deixe a garrafa de café aberta. Por favor, nada de calcinhas no registro do chuveiro, nada de pontas de cigarro e cinzeiro sujo perto dos meus temperos. E sobretudo, Loulou: Não fale mau do dinheiro que gasto no meu carro. Não me peça para escolher nada quando eu quiser o que a vida oferece sem me pedir para pensar... Tem, tem mais. Me deixe contar minhas histórias antigas e se divirta com elas. E me ame, sempre. Estamos entendidos, Loulou? Agora me beija. Eu te amo.

7 comentários:

Priscila Milanez disse...

porra! Bom demais, Saulo! Bom demais!
“Povinho mais sem imaginação para comida, gastaram tudo em filosofia e artes”. hahaha... Adorei isso! Lembrei de uma conversa sobre chucrutes e salsichas na cozinha da sua casa, enquanto vc preparava alguma daquelas delícias culinárias (brazucas ou não) que vc faz tão bem!

Mi disse...

A notinha aqui tá bem fajuta, péssima de trocadilhos.

Portanto: sem entender lhufas.

Paulo Bono disse...

mas se ela falasse mal de Zico, eu metia chumbo!

abraço

Joana disse...

gosto de ver a o caminho que toma sua literatura.
menos papo aranha, mais literatura de verdade.

Elton Pinheiro disse...

Bom texto, gostei.. cheguei aqui, não sei mais como, mas passei pelo blog Físsil Flor.. To procurando uns blogs literários, de poemas ou prosa,.. Está bem escrito, e o narrador (homem contemporâneo, como é árida a luta contra a decadência paterna,..continue escrevendo assim) é um obstinado, quer encontrar a si mesmo. É o que parece.

[ ]s

serafa disse...

Bompacas!

Vinícius Piedade disse...

Meu camarada, esse é mais um texto seu daqueles que tenho vontade de dizer e fazer virar teatro... desse jeito, logo mais vou ter que voltar a gritar textos outros seus pelos palcos.

vinícius piedade